Como as Democracias Morrem — Steven Levitsky e Daniel Ziblatt
RESENHA
Eunice Torres Nascimento
10/15/20253 min read


Há livros que não apenas informam, mas inquietam. Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, é uma dessas obras que ultrapassam o campo da ciência política e alcançam o território mais delicado da experiência humana: o da convivência, da ética e da responsabilidade coletiva. Publicado em 2018, o livro tornou-se conhecido por analisar o enfraquecimento das instituições democráticas em diversos países, mas o seu verdadeiro valor está na sutileza com que revela os sinais silenciosos da decadência moral e cívica de uma sociedade.
Ao longo de mais de trinta anos na magistratura, aprendi que as leis dizem muito, mas o comportamento humano diz mais. Levitsky e Ziblatt nos recordam exatamente isso: as democracias raramente morrem por golpes súbitos; elas se desintegram aos poucos, pelas pequenas concessões, pelas justificativas convenientes e pelos silêncios que se repetem. É um processo tão discreto que, muitas vezes, só percebemos quando já estamos dentro dele.
Poucos leitores sabem que o livro nasceu de uma pesquisa minuciosa, construída a partir da observação empírica de experiências em diferentes países, especialmente na América Latina. Os autores, ambos professores de Harvard, perceberam que o colapso democrático não depende apenas da força de um líder autoritário, mas do enfraquecimento gradual da cultura política de um povo. É a normalização do intolerável que abre espaço para o retrocesso. E esse é, talvez, o aspecto mais intrigante da obra: o modo como ela traduz um fenômeno político em uma reflexão moral e, de certo modo, espiritual sobre o poder e a responsabilidade.
À primeira leitura, pode parecer um livro sobre governos e partidos, mas, para quem lê com atenção, ele é uma meditação sobre o caráter humano. A democracia é um pacto de confiança e respeito mútuo, e sua vitalidade depende da nossa capacidade de ouvir, aceitar diferenças e agir com moderação. Nenhum sistema de regras, por mais bem elaborado que seja, sobrevive se aqueles que o compõem se deixam dominar pela vaidade e pela intolerância. Essa ideia me remete a tantas situações vividas nos tribunais, em que percebia, com clareza, que a verdadeira força de uma instituição não está nas normas que a regem, mas na integridade moral de quem as aplica.
A beleza do livro está nas suas camadas. É possível lê-lo como uma análise da política contemporânea, mas também como um espelho da nossa vida cotidiana. Quando deixamos de reagir a pequenas injustiças? Quando aceitamos que o “fim justifica os meios”? São perguntas que não se limitam ao campo político, mas atravessam as relações pessoais, profissionais e sociais. É nesse ponto que o texto se torna universal, tocando em algo essencial: a necessidade de vigilância ética, mesmo quando o mundo parece seguir distraído.
Há um trecho que me marcou profundamente: “A erosão democrática pode ser quase imperceptível. As pessoas ainda votam, ainda há jornais e ainda existem tribunais. Mas, passo a passo, o regime se transforma.” Essa frase é um convite à reflexão sobre o invisível, sobre aquilo que se altera silenciosamente enquanto acreditamos que tudo permanece igual. A liberdade, assim como a confiança, não desaparece de uma só vez. Ela se desgasta quando deixamos de cuidar dela.
Recomendo Como as Democracias Morrem não como um tratado político, mas como um convite à lucidez. É uma leitura que estimula o olhar atento e o pensamento crítico, que desperta o senso de responsabilidade e convida à empatia. É ideal para quem se interessa por história, comportamento humano e ética, e também para quem acredita que o futuro se constrói nas escolhas simples do presente.
Ao fechar o livro, senti um profundo respeito pelo que ele representa. Não é uma leitura pessimista, como alguns imaginam, mas um lembrete de que ainda há tempo, tempo para cuidar daquilo que nos une, daquilo que nos torna civilizados. Viver em democracia é um exercício diário de responsabilidade, tolerância e esperança. E, no fim, compreendi que a justiça, em seu sentido mais amplo, começa no olhar que temos sobre o outro e na coragem de defendê-lo, mesmo quando não pensamos da mesma forma.